Fundamentalismo cristão é um projeto de poder
Escrito por Carlos Juliano Barros — publicado na Carta Capital em 01/10/2015 06h32
Não há como negar a força política ancorada no fundamentalismo, hiperconservadora nos costumes e ultraliberal na economia, que está se consolidando.
Definitivamente, o avanço do fundamentalismo religioso já não pode mais ser encarado como folclore ou teoria da conspiração. E não se trata apenas de marcar posição contra o casamento gay, o direito ao aborto, a regulamentação da prostituição ou a legalização do uso da maconha. O que está em jogo é um projeto de poder baseado numa pretensa “moralização” da sociedade brasileira.
Ao longo das últimas décadas, os fundamentalistas cristãos praticaram uma musculação discreta, anabolizada pelas isenções de tributos garantidas às igrejas na Constituição de 1988. Aos poucos, foram capilarizando sua influência. Os canais abertos de televisão se converteram em plataformas de propaganda religiosa.
Com a benção – e o dinheiro – do Ministério da Saúde, o tratamento dos dependentes de drogas foi delegado a “comunidades terapêuticas” comandadas por igrejas. Nas penitenciárias de todo o país, os detentos passaram a receber de missionários cristãos, e não de agentes do Estado, até itens básicos de sobrevivência, como escova de dente e papel higiênico.
O fundamentalismo cristão, refletido principalmente nos discursos das igrejas evangélicas neopentecostais, ganhou corpo arrebanhando fiéis entre os párias da sociedade brasileira: a camada mais vulnerável da população que o Estado desprezou e que os movimentos sociais não conseguiram mobilizar. Mas esse diagnóstico já não dá mais conta de toda a história.
Hoje, o pastor Silas Malafaia promete pagar os estudos do primeiro membro de sua igreja – a Vitória em Cristo – que for aprovado em Harvard. Na internet, jovens de classe média e alta defendem com unhas e cliques os valores da família tradicional.
Em outras palavras, o discurso do fundamentalismo cristão não se populariza apenas entre os pobres e desvalidos. Na verdade, ele cai como um luva para qualquer um que se identifique como conservador nesse clima de caça às bruxas que se instalou sobretudo nas redes sociais.
Faz pouco tempo que o fundamentalismo cristão entrou de fato no radar da opinião pública. Isso aconteceu em março de 2013, quando o deputado Pastor Marco Feliciano, acusado de fazer declarações racistas e homofóbicas, assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.
Os protestos contra a nomeação de Feliciano acenderam um fagulha que explodiu nas manifestações de junho daquele ano - que até agora não terminou. De lá para cá, a oposição entre ativistas e conservadores só se acirrou. E, desde as eleições gerais de 2014, os discursos de ódio dão a linha de qualquer debate no país: vivemos uma espécie de macarthismo tupiniquim digital.
Não há como negar que uma força política ancorada no fundamentalismo cristão, hiperconservadora nos costumes e ultraliberal na economia, está se consolidando no Brasil. A referência vem da direita dos Estados Unidos – de onde os pastores evangélicos brasileiros copiam quase tudo.
No Congresso Nacional, eles atuam para sacramentar em forma de lei a ideia de que uma família só é digna desse nome se for constituída por “papai, mamãe e filhos”, como define o deputado e pastor Ronaldo Fonseca.
Ou para impedir que o Plano Nacional de Educação contenha diretrizes claras para combater preconceito por identidade de gênero. Ou para garantir que o direito ao aborto não seja estendido. Ou para impedir que profissionais do sexo não possam ser reconhecidos como trabalhadores. Ou para barrar a regulamentação do uso da maconha. A lista é grande.
É esse espírito de época conflituoso que serve de pano de fundo para o documentário #Eu_JeanWyllys. Ao longo de três anos, a equipe responsável pelo filme acompanhou os passos do deputado para revelar os bastidores do Congresso Nacional.
Único gay assumido no parlamento e defensor de causas que arrepiam os cabelos dos defensores da família tradicional, Jean Wyllys é o personagem que encarna, por excelência, os embates de um tempo de posições políticas tão polarizadas. O documentário é o perfil de um personagem pop e o retrato em cores vibrantes da sociedade brasileira e da cultura digital contemporâneas. Um mosaico de temas atualíssimos que alimenta discursos de amor e ódio nas redes sociais.
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