Pós-verdade, a filha legítima da fé religiosa

O famoso dicionário Oxford elege a cada ano uma palavra para ser "a palavra do ano". A deste ano foi "pós-verdade". É uma palavra pouco pronunciada, mas que denuncia uma prática tradicional e cada vez mais comum na humanidade: a construção do senso comum com base não em fatos e análises, mas com base em crenças e estereótipos.

A capacidade de raciocínio, por incrível que pareça, não faz parte de nosso instinto. É uma faculdade que precisa ser desenvolvida e ampliada. É como a atividade física que se não for feita com constância e intensidade, se atrofia e desaparece com o tempo. A inteligência depende muito de dedicação, esforço e não raramente de abnegação (recusa em valores e hábitos aparentemente positivos e agradáveis).

A pós-verdade é na verdade uma malandragem resultante da tentativa de "driblar" a racionalidade. Como analisar uma premissa exige esforço e abnegação, nada mais conveniente aceitar uma suposta "verdade" vinda de fontes aparentemente confiáveis, como lideranças estereotipadas e meios de comunicação longevos e tradicionais.

Prestando bastante atenção, pode se concluir que a pós-verdade nada mais é do que a mesma fé religiosa aplicada para assuntos não-religiosos. Sim, a fé, considerada a "maior qualidade do povo brasileiro", é a base para a pós-verdade. Com a fé, você acredita nas lideranças "celestes" e em seus "representantes". Com a pós-verdade você deposita confiança nas lideranças terrenas.

Não raramente a pós-verdade nasce da própria fé religiosa, o que justifica o fato de que muitas lideranças religiosas estão envolvidas na propagação de mentiras não-religiosas. O procurador Deltan Dallagnol, o homem que inventou que Lula era o "comandante máximo da corrupção", sem qualquer tipo de comprovação, é um líder religioso. nada mais coerente com Dallagnol falar em "não temos provas, mas temos convicção". 

Até hoje a própria fé em Deus é algo que nunca pode ser comprovado, sendo talvez a pós-verdade mais antiga do mundo. É um conceito que traz conforto para muita gente, embora seja algo sem pé nem cabeça. Ou acham que a ideia do imenso universo todo estar sob gestão de uma única pessoa, que vive se escondendo de nós, é racionalmente aceitável?

Muitos dos conceitos presentes no senso comum derivam não da análise de fatos, mas da satisfação de convicções (fé). Em uma comunidade de música no extinto Orkut um ingênuo fã mencionou, no dia da morte de Michael Jackson, que "todos os roqueiros foram influenciados por ele", se esquecendo de que além de ter iniciado a carreira na segunda metade dos anos 60 (quando o rock já estava suficientemente maduro), Jackson não era roqueiro e sim funkeiro (não no sentido brasileiro do termo), tendo nenhuma intimidade com o gênero. Este exemplo é uma prova que as pós-verdades podem consagrar violentos absurdos, em total desacordo com a realidade.

Conceitos como "pessoas ricas são mais felizes""futebol é dever cívico", "todos se casam por amor", "comunista não presta", "empresário não rouba", "não dá para ser bondoso sem religião" e outras premissas sem nexo, estão consagradas no senso comum e defendidas como verdades absolutas por uma gigantesca quantidade de pessoas. A mídia reforça o equívoco consagrando estas ideias e a realidade segue com base nestas pós-verdades, o que dá origem a muitos danosos preconceitos.

O que acontece com a política brasileira, que poderá nos devolver a um contexto real muito parecido com o da Velha República (1889-1930), foi totalmente construída com base em pós-verdades, como diz o excelente site jornalístico The Intercept a respeito do tema. Grande parte do sucesso do golpe se deu através da crença de boa parte da população em mentiras espalhadas na mídia tradicional e replicadas nas redes sociais. A fé, tão admirada pelos brasileiros, acaba de realizar o seu maior e catastrófico estrago.

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