Fake news e fundamentalismo como formas de ver o mundo


Por Igor Tadeu Camilo Rocha* - Justificando

Em fevereiro de 2017, Frank Shaeffer, escritor e contribuidor do jornal New York Times, publicou noutro portal de notícias, o Huffington Post, um artigo escrito pelo professor Christopher Douglas, intitulado The Religious Origins of Fake News and “Alternative Facts” a respeito das origens no fundamentalismo cristão das chamadas fake news. Este autor, professor da universidade de Victoria, no Canadá, é especialista em literatura anglófona e tem estudos que relacionam escritos fundamentalistas com o crescimento de uma nova direita.

Naquela data, havia, no campo progressista, uma grande “ressaca eleitoral” pós eleição de Donald Trump. Um fator importante relacionado à vitória do candidato republicano norteou o texto: no pleito de 2016, cerca de 81% dos brancos evangélicos que votaram escolheram Trump e, muitas vezes, o fizeram motivados por fake news.

Algo similar ocorreu no Brasil. Uma matéria da revista Época indica um famoso site voltado ao público evangélico, o Gospel Prime, como um dos grandes divulgadores de notícias falsas. Noutra reportagem de 2018, da BBC Brasil, mostrou-se haver relação entre as notícias falsas e a decisão de voto no meio evangélico.

O artigo de Douglas indaga sobre qual tipo de vínculo existe entre as formas de ver e representar a realidade de grupos fundamentalistas religiosos e teorias conspiratórias e notícias claramente falsas (“fatos alternativos”, nas suas palavras). O autor explora panoramicamente, no contexto da América do Norte, as raízes teológicas desse tipo de uso da informação que, segundo ele, estão bastante ligadas à própria gênese do fundamentalismo cristão, datada do início do século 20. Resumo, aqui, as 4 linhas gerais do texto: 

1- Rejeição à modernidade - O fundamentalismo cristão surgiu organizando-se em torno da rejeição à modernidade. Trata-se de uma questão bem conhecida de pesquisadores que estudam o tema. O filósofo, teólogo e especialista em religiões Scott Randall Paine, explica que o fundamentalismo, do lado protestante, teve um marco importante com a publicação do The Fundamentals: A Testimony to the Truth, feita em vários volumes entre 1909 e 1915, no qual definem-se pontos que deveriam ser resguardados a quaisquer tentativas de análise crítica da bíblia. Segundo ele, a Igreja Presbiteriana, em sua assembleia geral de 1910, reduziu esses elementos aos “cinco fundamentos”, que teriam três artigos de fé sobre Jesus:

a) nascimento virginal;
b) ressurreição corpórea;
c) segunda vinda iminente;
E dois itens mais teóricos:
d) a redenção vicária;
e) a inerrância da Bíblia, no sentido literalista.

A Igreja Batista, em particular, abraçou a atitude subjacente a esses “fundamentos”. Processo similar se notou, entre fins do século XIX até os anos 1960, no contexto católico [1]. 

Esses fundamentos, voltando ao artigo de Douglas, sustentam do ponto de vista teórico rejeições tocantes a outros temas associados à modernidade, como a teoria da evolução das espécies, de Darwin. Por conseguinte, ainda segundo o autor, a universidade e ciência acadêmicas, bem como a imprensa profissional secular e todas as demais instâncias de legitimação de verdade dentro de uma opinião pública liberal são sumamente rejeitadas [2].

Assim, o fundamentalismo cristão torna-se um terreno receptivo a negacionismos científicos (como suposta ligação de vacinas a doenças, o negacionismo climático, etc.), negacionismos históricos (sobretudo os relacionados à literalidade da Bíblia, mas é possível levantar outros exemplos, como o de setores católicos que negam ou atenuam violências dos tribunais da Inquisição) e um integrismo moral, não restrito ao ambiente particular e que toma espaços coletivos e políticas públicas (defesa da abstinência sexual como único método de combate a DSTs e gravidez precoce, etc.). 

2- Criação de “regimes de verdade” - Os grupos fundamentalistas criam comunidades de verdade, similares ao que sistematiza Michel Foucault como “regimes de verdade”, que seriam instâncias, instituições e protocolos socialmente organizados que produzem e validam aquilo que é considerado como verdade – além de também rejeitarem o que não é considerado verdadeiro [3]. 

O meio como fundamentalistas fazem isso é criar e enraizar verdadeiros ecossistemas de informação, que se valem de igrejas, da imprensa fundamentalista e, sobretudo a partir do século 21, da internet  (em sites como o Breibart, 4chan, Infowars, e outros que ele cita, mas os canais de YouTube e grupos de WhatsApp cabem também nessa lógica).

Para o fundamentalista, assim, não basta apenas negar a universidade, ciência ou imprensa profissional como um “lobo solitário”, mas são necessários grupos e instituições que legitimem tais negações como verdades literais e integrais.

Isso abarca desde grupos que militam pelo ensino do criacionismo em escolas, como também comunidades defensoras de teorias conspiratórias como a do terraplanismo.

Forma-se, assim, uma cosmovisão na qual o mundo se divide entre um nós esclarecidos e portadores da verdade contra os outros, dominados e doutrinados por forças demoníacas, “comunistas”, secularistas, etc. 

3- Degradação do debate público - Todo esse processo produz uma enorme degradação do debate público. O uso da razão, o debate de ideias e apontamento de evidências e contradições para se chegar à verdade por via de método crítico se reduz a uma busca pela confirmação de crenças prévias e/ou desqualificação do outro. Evidências e argumentos perdem relevância na medida em que toda a realidade pode e deve ser torcida para se confirmar as tais verdades escondidas pelos outros, parte das conspirações do mundo moderno (na qual se incluem a ciência moderna, a educação formal e a imprensa). Uma espécie de “anti-iluminismo” se forma. 

4- Fake News - Não menos importante, o autor frisa que esse processo todo é muito anterior à internet. As fake news não começaram nas últimas eleições e nem com as redes sociais, mas são parte constituinte de um sistema sólido de se observar a realidade. Douglas fala do início do século 20, mas há pesquisas que apontam questões um pouco parecidas em épocas ainda mais distantes de nós [4]. 

Dito isso, voltando à análise de Paine, é possível entender os aspectos que enumerou no que chama de “anatomia do fundamentalismo”.

O autor apontou quatro traços típicos dele ao longo de sua história. Um psicológico, cujo traço marcante é um subjetivismo fechado, caracterizado pela resistência à correção, não inclinação ao diálogo e nem à simpatia ou empatia a quem tiver posições contrárias ou alheias ao fundamentalista; um epistemológico, relacionado a fontes de conhecimento, marcado pelo fideísmo radical ou submissão a autoridade como fonte exclusiva ou predominante de certeza, marcado por uma atitude de oposição ao enriquecimento pela filosofia e ciências, ao desenvolvimento crítico e à dialética entre razão e fé (religiosa ou não); um hermenêutico, relacionado a interpretação de seus fundamentos, marcado pela atitude literalista, ou seja, tendente a interpretações literais de suas fontes de verdade e certeza; e um pragmático, relacionado a tendências de ação relacionada a essa visão de mundo, na qual o fundamentalista tende à radicalidade, opondo-se a valores democráticos liberais, como a acomodação e negociação [5].

Tais aspectos trazidos no artigo de Douglas sobre a eleição estadunidense e no de Paine sobre o fundamentalismo trazem elementos facilmente identificáveis em diversos agentes públicos no Brasil, tanto nas esferas de formação de opinião como na própria ação política. Figuras que vão de youtubers a lideranças político-religiosas que se apresentam a seus públicos como fonte de verdade exclusiva e quase inquestionável, acompanhado da deslegitimação promovida por esses agentes do conhecimento acadêmico-científico e da imprensa não voltada a nichos específicos, como católicos ou evangélicos fundamentalistas, somado a uma atitude hostil em relação à divergência de ideias (reduzida ao eu conhecedor da verdade contra o outro manipulado ou mal intencionado), permeado de muitas teorias pseudocientíficas e notícias falsas, compõe um quadro que lembra bastante o nosso conhecido olavismo cultural.

Entre personalidades como Olavo de Carvalho, a ministra Damares Alves ou o atual ministro das relações exteriores Ernesto de Araújo, e teorias como a de que o aquecimento global faria parte de uma conspiração visando a destruição do Ocidente, ou a de que o Papa Francisco I seria o “anticristo” ou mesmo “comunista” entre outras, facilmente identificáveis como completos absurdos, vemos um conjunto de atitudes de grupos de direita, religiosa ou não, que devem ser observados com cuidado. Há, nas suas narrativas, uma cosmovisão complexa, que abarca diversos aspectos da realidade e que não se resume, de forma alguma, à falta de conhecimento sobre os mais diversos temas e assuntos. Mais grave, dificilmente pode ser enfrentada somente por meio da argumentação ou demonstração da falsidade de qualquer dessas notícias falsas ou teorias conspiratórias.

Voltando ao tema central do artigo de Douglas – no caso, a decisão de voto de fundamentalistas ser tomada dentro de uma cosmovisão da qual as fake news são parte importante–, podemos dizer que uma reflexão similar a dele alcançaria conclusões parecidas observando o caso brasileiro. E não somente quanto à decisão eleitoral. Um exame rápido de memória sobre teorias e boatos semelhantes, com ampla circulação, tendo a origem de sua formulação em grupos cristãos fundamentalistas, chegaria a diversos exemplos já bastante enraizados numa memória social brasileira.

São bem conhecidos alguns casos em que se atribuiu pactos com o demônio a celebridades, como aquele do qual é vítima a apresentadora Xuxa Meneghel. Também já circulou factoide idêntico a respeito de supostos rituais que seriam realizados por atores da Rede Globo a fim de alcançar sucesso em novelas e outras produções, assim como o do folclórico caso do boneco do Fofão, também relacionado a um suposto satanismo. É comum, também, encontrar acusações desse mesmo teor contra o Papa Francisco I em diversos sites fundamentalistas católicos, atualmente.

Pseudociência, moralismo, fundamentalismo religioso, conservadorismo e tentativas de desqualificar meios tradicionais de mediação de informação se misturam nas narrativas desse tipo de “fatos alternativos”. Um exemplo disso se encontra no site Terça Livre, e seu dono Allan dos Santos, que recentemente atribuiu uma falsa declaração à jornalista Constança Rezende, do Estado de São Paulo, para criticar sua cobertura quanto a acusações de corrupção contra Flávio Bolsonaro. Importante frisar que a informação falsa foi endossada pelo próprio presidente.

O histórico do site em questão, levantado pela revista Veja em artigo no blog Gente, da mesma revista, aponta para uma postura do site e seu autor tanto subservientes ao atual governo como hostis à imprensa profissional, com ataques frequentes a veículos como a Folha de São Paulo, Globo e outros. Seguidor de Olavo de Carvalho, Allan dos Santos, endossando vídeo já conhecido do ideólogo de extrema direita no qual afirma que o tabagismo não faz mal à saúde, publicou outro vídeo em que afirma que os efeitos do cigarro são menos nocivos que os da masturbação.

Relacionando casos acima com a anatomia do fundamentalismo analisada por Paine e as reflexões de Douglas, vemos que tais “fatos alternativos” compõe narrativas que sustentam sistemas muito coesos de visão de mundo. Seu subjetivismo fechado reforça a certeza, colocando tais pontos acima de qualquer tipo de crítica. Seu fideísmo radical a determinados ideólogos e a fontes alternativas garante ao sistema as fontes de tais certezas, ao passo que o que as contradiz se reduz a partes de um mundo do qual se consideram livres, um mundo que seria “doutrinado” e controlado por interesses vinculados a conspirações globais.

O espaço para o debate se degrada e chega ao ponto de quase inexistir, pois certezas absolutas passadas pelos conspiracionismo afirmados de forma peremptória encobrem as dúvidas e incertezas fundamentais ao debate, tal como a possibilidade de convencimento.

Por fim, essa cosmovisão motiva ações concretas, que muitas vezes se tornam atos violentos, como aqueles recentemente descritos pela professora e blogueira Lola Aronovich, sobre channers que formaram grupos “masculinistas” que, motivados por um radicalismo antifeminista, praticam e incentivam diversos crimes.

Pergunto, por fim, como combater tal problema. A resposta não cabe aqui, dada a complexidade dele, mas um primeiro passo seria entender dois pontos complementares.

Primeiro, de que boatos, notícias falsas, “fatos alternativos”, teorias de conspiração e pseudociência não podem ser abordados e vistos como curiosidades ou piada, pois não o são. Tudo isso se conecta, transformando-se em visões fechadas de mundo que conferem identidade e legitimidade para muitas ações na vida pública, com sérios riscos à democracia.

Segundo, de que é necessário pensar táticas que envolvam cientistas, acadêmicos, jornalistas e setores moderados de igrejas e outros grupos religiosos, de forma articulada, para se “furar a bolha” do fundamentalismo.

Apenas desmentir ou mostrar os absurdos de algumas de suas premissas se mostra, atualmente, ingênuo e inútil. Atribuir a convicção a crenças como “o cigarro não faz mal” ou “o PT é comunista” a falta ou baixa qualidade da educação formal é igualmente de pouca utilidade, além de não ser totalmente verdadeiro, uma vez que se trata da fabricação de formas de se perceber o mundo, cosmovisões, refratárias, inclusive, à própria educação formal – atacada fortemente por tais setores de extrema direita. A partir daí podemos atacar tal problema de frente.

*Igor Tadeu Camilo Rocha é mestre e doutorando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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